Aliciamento sexual na internet: crime público em Portugal

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Maria João Leote de Carvalho

Em Portugal, o aliciamento online de alguém com menos de 18 anos para fins sexuais (o online grooming, na sua expressão em inglês) é crime público punível por lei desde 2015. Esta recente regulação resulta da necessidade de o Estado assegurar uma melhor proteção à criança visando a promoção dos seus direitos que podem ser ameaçados em interações em ambientes digitais. Conheça o que diz a lei – e também sobre as idades de consentimento sexual.

O que é o online grooming?

Trata-se de situações em que o agressor (ou agressora) adulto utiliza serviços de comunicação eletrónica – entre os quais podem estar as redes sociais – para contactar uma criança e ganhar a sua confiança a fim de estabelecer relações com o objetivo de vir a concretizar um eventual encontro pessoal para efeitos de atividade sexual.

A intenção é abusar e /ou explorar sexualmente a criança, podendo vir a comercializar e utilizá-la para a produção e distribuição de materiais pornográficos.

Para isso, o agressor pode empregar várias estratégias, como o engano, a manipulação emocional e afetiva, a promessa de benefícios materiais, a chantagem, a coerção, entre outras. São, assim, colocados em causa o bem-estar, o desenvolvimento integral e a personalidade da criança e, de modo particular, a proteção do seu direito à autodeterminação sexual.

Uma nova tipologia criminal na lei penal portuguesa

O Código Penal português distingue os crimes de natureza sexual em dois grupos:

– Os crimes contra a liberdade sexual (artigos 163.º a 170.º) punem toda a atividade sexual praticada sem o consentimento da vítima, independentemente da sua idade;

– Os crimes contra a autodeterminação sexual (artigos 171.º a 176.º) punem a prática sexual com menores de 18 anos, e cuja existência esteja diretamente ligada à necessidade de proteção do livre desenvolvimento da personalidade da criança ou adolescente no domínio sexual.

OArtigo 176.º-A – Aliciamento de menores para fins sexuais é um crime recente na lei portuguesa.Entrou em vigor a 23 de setembro de 2015 (Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) em cumprimento do artigo 5.º da Convenção Europeia contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças, do Conselho da Europa. As penas de prisão efetiva que considera podem ir até dois anos.

Porque se trata de um crime de natureza pública, basta que os serviços do Ministério Público tomem conhecimento da situação para que o processo criminal seja instaurado, independentemente da vontade da vítima.

Crimes contra autodeterminação sexual e idade de consentimento

O Artigo 176-A- Aliciamento de menores para fins sexuais considera todas as espécies de atos de aliciamento à criança para encontros, com o objetivo de:

  • Manter relações sexuais;
  • Prática de ato sexual qualificado,
  • Uso de menor em espetáculo pornográfico,
  • Aliciamento de menor para espetáculo pornográfico;
  • Usar um menor em fotografia, filme ou gravação pornográfica, independentemente do meio;
  • Aliciar um menor para fotografia, filme ou gravação pornográfica, independentemente do meio;
  • Produzir, distribuir, importar, exportar, disseminar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, fotografias, filmes ou gravações pornográficas.

A título de exemplo, entre esses atos pode estar a marcação do local do encontro ou o providenciar-se transporte para a deslocação da criança.

Embora o Artigo 176-A abranja o aliciamento para fins de utilização de crianças em “espetáculos pornográficos” ou para produção de materiais de abuso sexual infantil, o relatório Sexual Exploitation of Children in Portugal chama a atenção para o facto de os números 1 e 2 do Artigo 171 – Abuso Sexual de Crianças só se aplicarem a menores de 14 anos.

Assim, para a consideração do crime de aliciamento online de crianças para fins sexuais, importa reter que, em Portugal:

  • O consentimento para a prática de atividade sexual por parte de um menor de 14 anos é irrelevante em termos da lei e o ato, a existir, é considerado crime público, o que significa que qualquer pessoa pode apresentar queixa às autoridades.
  • Os crimes sexuais contra adolescentes maiores de 14 anos são de natureza semipública, o que significa que dependem de denúncia para tramitar e o consentimento do adolescente torna-se juridicamente relevante;
  • A idade legal para um menor ter relações sexuais com um adulto sem relevância criminal no país é de 16 anos desde que essa relação não tenha ocorrido com fins lucrativos nem que o adulto seja a pessoa a quem tenha sido confiada a educação ou assistência da criança;
  • Embora a lei permita a relação entre menores e adultos a partir dos 16 anos, adolescentes com mais de 14 anos também podem praticar sexo consensual, ainda que com algumas nuances;
  • Se a relação entre o menor e o adulto se desenvolver entre os 14 e os 16 anos, só é crime se o adulto abusar da inexperiência do menor para o obrigar a cometer o ato;
  • A lei prevê que a vítima [menor] de crimes sexuais possa apresentar a denúncia até cinco anos após completar 18 anos estando uma proposta que visa alargar este prazo a aguardar aprovação no Parlamento.

A regulação jurídica das interações online prejudiciais a crianças, de grande complexidade e de difícil concretização, é, contudo, tarefa imprescindível para responder à realidade social.

Referências

CIAF Portugal e ECPAT International (2018). Sexual Exploitation of Children in Portugal, Banguekok, Tailândia, 4 de outubro de 2018  3ciclo-cc1.pdf (ministeriopublico.pt)

Código Penal Português (1982 [versão mais recente, 2021]).Decreto Lei n.º 48/95, de 15 de março, com as alterações introduzidas na sua 55.ª versão, Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/decreto-lei/1995-34437675

Conselho da Europa (2007).Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, Lanzarote, Série de Tratados do Conselho da Europa – N.º 201, 25 de outubro de 2007 168046e1d8 (coe.int)

Notas

O relatório Sexual Exploitation of Children in Portugal, da autoria do CIAF – Centro Integrado de Apoio Familiar Portugal e da ECPAT International, foi submetido para a Revisão Periódica Universal da situação dos direitos humanos em Portugal apresentada na 33ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em maio de 2019.

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do CEEC Individual – 2021.00384.CEECIND/CP1657/CT0022

A autora agradece a colaboração do Dr. Rui Cardoso, Procurador da República.

Sobre a Autora

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Maria João Leote de Carvalho

Investigadora Auxiliar - NOVA FCSH. CICS.NOVA

Tem desenvolvido investigação participativa com crianças para entender como essas podem contribuir para o desenvolvimento de novas tecnologias de informação e comunicação de cariz sócio-técnico.