

Cristina Ponte e Raquel Pacheco
9 de Abril, 2025
A história de Jamie Miller, num enredo que envolve os seus pares, família, educadores, profissionais de saúde e polícia, convida a refletir sobre vulnerabilidades de adolescentes. Não apenas digitais, mas também o isolamento em casa ou representações de masculinidade tóxica.
A série da Netflix incide sobre um caso de homicídio de uma colega de turma por parte de um adolescente de 13 anos, no Reino Unido. Nos quatro primeiros dias após o seu lançamento chegou a quatro dias aos 24 milhões de visualizações. Saltou para os noticiários, onde especialistas, sobretudo da área da Psicologia, sublinharam problemáticas de se crescer hoje em contextos digitais marcados pela velocidade de circulação de conteúdos e de contactos, a vigilância dos outros e exposição ao seu olhar – muitas vezes cruel.
A qualidade técnica dos quatro episódios filmados em plano-sequência, um tempo real que coloca o espectador dentro da cena (o momento da detenção; a apresentação de prova; a sessão com a psicóloga; a presença indireta na vida da família), combina-se com contributos para reflexão sobre os emaranhados do viver online e offline. De destacar a recomendação do Ministério da Educação britânico para que seja discutida nas escolas do país.
Conhecer para capacitar
Esta plataforma tem incluído as relações problemáticas entre pares, na perspetiva de importa conhecer o fenómeno para capacitar – mediadores e os próprios jovens – para intervir.
Um desses contributos foi a análise às características dos jovens que, no questionário EU Kids Online de 2020, declararam ter agredido colegas. Essa análise evidenciou três perfis, que tinham em comum uma baixa auto-estima e ambientes familiares onde a comunicação com os pais tendia a ser baixa ou a estar ausente. Outro ponto que se evidenciou foi a constatação de que cerca de metade dos agressores tinha também sido alvo de práticas agressivas pelos pares.
Desvendando tramas e realidades
O que terá levado Jamie, um adolescente franzino e inseguro, a atacar à facada Katie, a colega de escola que colocava emojis em fotografias suas no Instagram – interrogam-se o inspetor da polícia local e a sua colega de missão. Uma visita à escola e o interrogatório a estudantes, professores e outros profissionais revelam-se infrutíferos, para além das marcas de um clima de insegurança, desconforto e tensão.
Ficaremos mais tarde a saber que Katie, também de 13 anos, tinha enviado uma foto sua, nua da barriga para cima, a um colega em que estava interessada e que este tinha partilhado a foto pela escola. Jamie, que sentia atração por Katie, pensando que esta estava fragilizada pela vergonha de ter sido exposta, teve, finalmente, coragem para a convidar para sair consigo. Katie não gostou da ousadia de Jamie, franzino e desajeitado, e responde-lhe com comentários e emojis. Mas apenas quem conhece esses códigos consegue ler o seu significado.
Será Adam, o adolescente filho do inspetor e da mesma escola – onde também sofre de bullying – a fornecer-lhe a resposta. As cores dos emojis (os red pills) de Katie carregavam desprezo e gozo, amplificados nas partilhas e likes de dezenas de colegas.
É o filho que ensina o pai a ler os códigos de uma cultura que lhe escapava, e é nesse momento que este dá conta de como tem estado ausente da vida do filho. O inesperado programa de um almoço a dois por si sugerido, surpreende o próprio Adam.
No desenrolar da trama percebemos que há muitas camadas e subjetividades naquele universo adolescente, mediado não só por adultos que lhes são próximos – os seus pais, professores e funcionários da escola – mas também por adultos que produzem conteúdos específicos para adolescentes.
Já tinha ouvido falar em incels e em Andrew Tate?
Como outras plataformas, o Instagram é “terra sem lei”, com nichos e bolhas que, virtualmente, podem trazer conforto e inspiração.
Andrew Tate é um destes nichos, um adulto com dupla cidadania, norte-americana e britânica, e influenciador misógino com milhões de seguidores no Instagram. Acusado de tráfico e de violência sexual e física contra mulheres, a sua masculinidade tóxica é seguida por rapazes adolescentes, inseguros quanto à sua identidade e relacionamentos com raparigas.
O crescimento da comunidade incel no contexto digital decorre de uma guerra silenciosa. Através de algoritmos construídos ideologicamente de forma comprovadamente duvidosa, espalha sem deixar rasto as suas ideias para adolescentes isolados, utilizando narrativas de ódio e de ressentimento. Este grupo de homens heterossexuais culpa as mulheres e a sociedade pelo seu celibato involuntário e a sua mensagem pode captar jovens que se sentem inadequados e inseguros.
Jamie não veio de uma família disfuncional, não é um psicopata, não tem traumas nem abusos que justifiquem o que fez. Jamie é um adolescente como muitos outros, que vive num sistema silenciosamente violento. Quando se isola em casa e se conecta à rede encontra conteúdos que o manipulam na direção do ódio e da misoginia, que o convencem de que é uma vítima do mundo e que merece a vingança.
Quantos Jamies estarão neste momento a ser formatados por discursos similares?
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Sobre as Autoras
Cristina Ponte
Professora Catedrática - NOVA FCSH. ICNOVA
Tem investigado a relação de crianças e jovens com os media na perspetiva dos seus direitos e contextos familiares em projetos nacionais e europeus.
Ver Publicações →Raquel Pacheco
Associação P de Potência e Docente de Ciências da Comunicação na Universidade Aberta
Fundadora da Organização Não Governamental de Mulheres (ONGM) - Associação P de Potência @pdepotencia, realizadora, argumentista, docente e Doutora em Ciências da Comunicação.
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