Infância e cultura da vigilância íntima

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Ana Hermeto Kubrusly

São hoje comuns imagens de ecografias nas redes sociais e aplicativos que monitoram a gravidez, os movimentos do feto ou as contrações. Depois do nascimento, chegam as publicações de fotos e vídeos do bebé, celebrando o primeiro mês de vida, as primeiras palavras, os primeiros passos. Berços, chupetas e até mesmo meias inteligentes registam o padrão de sono, a temperatura corporal, os batimentos cardíacos e outros dados biométricos da criança. Já os brinquedos inteligentes, como a Hello Barbie ou o Dash & Dot, reúnem dados dos miúdos a partir de brincadeiras, conversas, movimentos, imagens e localização.

As situações descritas acima fazem parte de um novo fenómeno que se populariza entre pais e cuidadores, a chamada vigilância íntima. Esta tendência caracteriza-se não só por práticas de vigilância digital adotadas por familiares bem-intencionados e que se preocupam com o desenvolvimento e a segurança das crianças pelas quais são responsáveis. Caracteriza-se também pela exposição de uma “parentalidade do cuidado”, onde a publicação de fotografias naturaliza a ideia de que os pais que prezam a segurança e saúde de seus filhos devem participar no fenómeno partilhado da vigilância íntima. 

Esta vigilância íntima, fortalecida pela popularização de dispositivos inteligentes voltados para crianças, torna-se assim cada vez mais normalizada enquanto expressão de afeto por parte dos cuidadores, aponta Tama Leaver, presidente da Associação de Investigadores da Internet, neste artigo.

Se, por um lado, o processo de vigilância íntima pode ser fonte de prazer, bem-estar e conexão, por outro, o mesmo processo desperta uma série de receios. Ainda que os dispositivos digitais que auxiliam neste processo de vigia prometam a quem os usa tranquilidade, conforto e segurança, existem preocupações em relação à privacidade e aos direitos infantis associadas a essas novas práticas que decorrem do próprio modelo de negócio da internet.

O modelo de negócio da internet

Para compreender a origem desses receios, é importante reconhecer que, no ambiente digital que hoje existe, a recolha constante de dados — sejam eles biométricos, geolocalizadores ou de natureza pessoal — a partir de interações humanas com as tecnologias digitais faz parte de um modelo de negócio, o chamado capitalismo da vigilância que tem sido apresentado por autores como a académica norte-americana Shoshana Zuboff, neste artigo. Dentro dessa lógica, o lucro advém do processamento, recolha e venda de dados a terceiros, sendo essa informação a ser usada para calcular, prever e influenciar futuros comportamentos.

Assim, a recolha de dados pessoais acaba por ser parte do modelo de negócio das plataformas digitais, onde o usuário ‘cede’ os seus dados, inscritos na sua pegada digital, em troca do acesso aos serviços da plataforma. Nesse sentido, os dados pessoais tornam-se uma moeda de troca tão valiosa quanto o próprio dinheiro. Esta dinâmica, atualmente, é considerada como não problemática por boa parte dos utilizadores da internet, que consideram que os seus dados pessoais não têm valor – ainda que existam empresas dispostas a pagar por eles.

A dataficação da infância

Mas a recolha, tratamento e venda de dados pessoais não envolve apenas utilizadores adultos. Perante a recolha e análise constante de dados pessoais, a chamada dataficação, bebés e crianças mais novas constituem um grupo particularmente vulnerável, uma vez que iniciam a sua participação nesse processo de forma involuntária, por vezes até antes mesmo de nascerem. A dataficação da infância, portanto, tem sido um assunto cada vez mais discutido na comunidade científica e merecedor de atenção pública. Por exemplo, neste artigo, a investigadora australiana Deborah Lupton discute o uso e o valor dos meios digitais para informação durante a gravidez e os primeiros tempos de maternidade, a partir de depoimentos de jovens mães. Por sua vez, neste relatório da Comissão Europeia, vários investigadores refletem sobre questões de segurança e privacidade relacionadas com brinquedos digitais com ligação à internet.

A chamada dataficação da infância está profundamente relacionada com a cultura da vigilância íntima, e está a decorrer em proporções e maneiras inéditas. Por isso, não é possível precisar quais serão seus efeitos — positivos ou negativos — a longo prazo. Ainda assim, um dos maiores problemas apontados por cientistas é a falta de transparência sobre o destino dos dados coletados. Seja por dispositivos inteligentes ou pelas redes sociais, não é possível dizer como, quando e com que fim esses dados poderão vir a ser usados. Outra preocupação relevante é que os direitos da criança raramente são levados em conta nestes cenários, sobretudo o seu direito à privacidade.

Quando crescem, crianças mais velhas e adolescentes passam a ter maior autonomia e agência em relação à sua própria participação no meio digital, mas isso não significa necessariamente que estejam atentos ao impacto que a dataficação pode ter nas suas vidas.

Nessas fases, para estimular boas práticas digitais, pais e cuidadores podem contar com recursos educativos que ajudam a orientar os seus filhos em relação a escolhas sobre sua privacidade e segurança. Por exemplo, o Data Detox Kit – ferramenta criada pela Tactical Tech, uma organização não governamental internacional – oferece atividades para se trabalhar em família ou noutros ambientes o bem-estar de jovens no contexto digital.

Recursos como este podem ser um bom começo para encorajar uma reflexão crítica sobre a vigilância íntima e a dataficação no contexto familiar.

Sobre a Autora

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Ana Hermeto Kubrusly

Doutoranda em Ciências da Comunicação - NOVA FCSH.

Interessada na relação entre jovens e o meio digital, com atenção à datificação da infância e bem-estar digital.