O acesso das crianças à sua música na era digital

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Pedro Silva Ferreira

Tem discos ou cassetes de música associados a memórias da sua infância? Provavelmente sim – estudos atestam o poder da música na construção e vividez das memórias autobiográficas, reportado até como sendo superior ao de outras robustas bengalas da memória, como as caras familiares. Mas com o domínio do consumo digital de música – mais efémero e intangível – sobre os cada vez mais escassos formatos físicos e equipamentos para os reproduzir – de mais fácil manipulação autónoma pelas crianças – que relação desenvolvem hoje as crianças com a sua música? Qual a importância e que formas existem hoje de materializar as suas coleções musicais?

Os serviços de streaming de áudio, como o Spotify ou o Apple Music, em conjunto com os desenvolvimentos nos serviços de comunicação móvel, vieram trazer a possibilidade de aceder virtualmente em qualquer momento e lugar a um imenso repositório musical. Para facilitar a navegação e motivar um consumo mais frequente e diversificado do conteúdo que oferecem, estas plataformas investiram numa arrumação muito inteligível e segmentada do conteúdo e em funcionalidades de recomendação automática baseadas nas audições anteriores, gostos e até estado de espírito declarados de cada utilizador.

Mas se por um lado se reconhece o contributo positivo destas plataformas para o estímulo da audição e desenvolvimento da cultura musical de cada um, estas trouxeram também uma “destangibilização” das coleções musicais que deixa de fora aqueles que não têm um acesso contínuo ou independente ao meio digital, como as crianças de menor idade, que assim perdem a possibilidade de construir e de se relacionar com as suas audiotecas pessoais.

Os hábitos de audição de música hoje

Na última edição do festival de música MEO Sudoeste três dos cabeças de cartaz foram artistas cuja popularidade se associa a excertos de poucos segundos de música usados de forma viral nos curtos vídeos musicados das redes sociais que fomentam este formato – em particular a TikTok, a sua precursora. Um estudo de 2020 encomendado pela própria TikTok para avaliar o seu impacto cultural determinou que 75% dos seus utilizadores descobrem novos artistas na plataforma, que 63% descobrem músicas que nunca ouviram antes e que 72% lhe associam certas músicas.

Outro estudo sobre os hábitos de audição de música, conduzido com cerca de 1200 crianças britânicas entre os 8 e os 15 anos de idade, no início de 2020, reforça a ideia do impacto das redes sociais e, sobretudo, das plataformas de vídeo – como o YouTube – na audição de música. O uso de formatos físicos é o menos comum – entre as crianças com 8 anos de idade, 22% ouve música através de CDs e 7% através de discos de vinil. Entre todas as idades o meio mais usado é o telemóvel (63%), seguido do rádio (36%), enquanto no grupo de idade mais baixa o mais frequente é o rádio (52%) seguido do telemóvel (35%) – uma inversão do principal meio de acesso que poderá ser indício do peso do momento de transporte para a escola e do acesso autónomo ao telemóvel nos hábitos de audição de música.

No caso do consumo digital, em que se inclui o acesso por telemóvel, tablet ou computador, entre as famílias com melhor contexto socioeconómico são as plataformas de streaming de áudio as mais usadas (64%), seguidas das plataformas de vídeo (49%). Resultado que se inverte entre as famílias com contexto socioeconómico mais desfavorável, com as plataformas de vídeo (58%) a serem a opção predominante.

O resumo das audições do Spotify de 2021 levou pais a desabafar nas redes sociais sobre as suas listas de músicas mais ouvidas, dominadas por preferências dos filhos – evidência da falta de autonomia destes no acesso a música na era digital.

Quanto à média de horas semanais de audição de música, constatou-se um crescimento com a idade – e consequente autonomia digital. A média reportada entre todas as idades foi de 8 horas e 22 minutos, enquanto entre os mais novos foi de 5 horas e 27 minutos. 20% das crianças de 8 anos de idade responderam não ouvir música.

Efeito Mozart? A importância da audição (ativa) de música

Num estudo conduzido em 1993 observou-se que a audição prévia de uma peça específica de Mozart para piano (Sonata K. 448) aumentou o desempenho de participantes adultos num teste à capacidade de cognição espacial, durante até 15 minutos depois da audição desta peça. Este estudo recebeu grande atenção por parte dos meios de comunicação social, que atribuíram o termo de “Efeito Mozart” ao fenómeno. Esta mediatização e generalização da experiência gerou o que se apelida em literatura mais recente de revisão, inclusivamente pelo próprio autor do estudo original, como uma “lenda científica” com a premissa “Ouvir Mozart torna-nos mais inteligentes”, e uma indústria assente nesta ideia. Não há, no entanto, indícios de que este resultado possa ser generalizado a este ponto e mesmo a sua replicação, com condições semelhantes, tem-se mostrado difícil de atingir.

No entanto, outro estudo de revisão do “Efeito Mozart”, que considerou um teste à capacidade de cognição espacial de crianças entre os 10 e os 11 anos depois da audição de música clássica, musica popular ou uma discussão sobre a experiência, concluiu que “os benefícios positivos de ouvir música nas habilidades cognitivas são mais evidentes quando a música é apreciada pelo ouvinte”. Outros estudos também reforçam a conclusão de que o “Efeito Mozart” se deve em grande parte à excitação ou estado de espírito decorrente da audição, e não a Mozart ou à composição específica.

Apreciação da música que se ouve

Há vários benefícios associados a esta apreciação da música que se ouve. Um crescente corpo de evidência científica tem destacado o papel da audição de música no desenvolvimento da identidade pessoal e social, na formação de relacionamentos interpessoais e na regulação do humor e emoções. É também tida como um estímulo à formação musical das crianças, seja ela por via formal (atividade educativa) ou informal (audição ativa – atenta), o que se reporta também por sua vez como um catalisador do desenvolvimento do cérebro, particularmente nas áreas de aquisição de linguagem e capacidades de leitura. Para crianças e adultos, a música é tida como um contributo para o fortalecimento da capacidade de memória.

Importam por isso formas de facilitar a audição ativa de música por parte das crianças e de as motivar a colecionar e identificar a sua música.

Novas formas de tangibilização

Hoje em dia já é possível encontrar reprodutores de música desenhados para serem manipulados autonomamente por crianças, que permitem associar artefactos físicos (cartões ou pequenas figuras) a coleções musicais digitais, como o Yoto, o Jooki ou o Toniebox, entre outros – infelizmente com distribuição reduzida em Portugal, mas com encomenda disponível. Estes sistemas consideram artefactos já com conteúdo áudio associado – música ou estórias, infelizmente também ainda limitado no conteúdo em português – bem como a possibilidade de associar a artefactos “em branco” qualquer conteúdo próprio ou até, em alguns casos, acedido diretamente de plataformas de streaming. Quando no formato de cartão permitem também a personalização do próprio artefacto, o que motiva as crianças a identificar, à sua maneira, as suas coleções e a fortalecer a relação com a sua audioteca pessoal. Incentivam também a partilha das coleções preferidas com, e entre, as crianças.

Dispositivos de acesso a assistentes de voz, como o Echo Dot+ Kids’ Edition da Amazon ou o HomePod Mini For Kids da Apple, podem também ser considerados como uma forma de acesso facilitado de crianças a audição de música em casa. Mas, além de poder ser considerado intrusivo e pouco preservador da privacidade da criança, o comando por voz não contribui para esta mencionada tangibilização da sua audioteca.

Nota também para o lançamento em 2020 da plataforma de streaming de áudio Spotify Kids, que oferece não só conteúdo dedicado especificamente a crianças mas também uma vasta coleção de música da plataforma mãe, filtrada do conteúdo considerado não-adequado para o público infantil, com uma interface que facilita a navegação por parte das crianças. O seu uso, no entanto, mantém-se dependente da disponibilidade de um ecrã, e a construção de uma audioteca é limitada, no máximo, a uma existência virtual.

Reprodutores de áudio para crianças. Crédito: Reviewed / Janelle Randazza

Sobre o Autor

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Pedro Silva Ferreira

Doutorando em Media Digitais - NOVA FCSH. ICNOVA

A sua pesquisa entre os domínios da informática e educação visa criar uma plataforma para a gestão da aprendizagem informal articulada com os recursos domésticos e objectivos formais de desenvolvimento de cada criança.