Dataficação e infância

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Cristina Ponte

Chegou o momento para questionar a dataficação continuada da infância, em casa, na escola, nas relações entre amigos, e para imaginar um futuro diferente em que a recolha e uso de dados digitais seja reorientado para o bem social e os melhores interesses das crianças, sustentam Giovanna Mascheroni e Andra Siibak, duas investigadoras europeias com mais de uma década de pesquisa sobre crianças, jovens e meios digitais.

O objetivo deste livro escrito a quatro mãos e reunindo largas dezenas de estudos recentes é contrariar a opacidade que rodeia a recolha e monitorização de dados pessoais de milhões de crianças. Uma matéria que tem merecido muito menos atenção pública do que outros riscos da internet.

Para isso o livro começa por apresentar quatro pilares em que assenta esta análise sobre a dataficação.

Pilar 1: a dataficação como consequência e intensificação das sociedades profundamente marcadas pela mediação da tecnologia, na linha do que apontam estudos como este.

Pilar 2: a dataficação como dataísmo, o fenómeno cultural assente nas crenças de que tudo deve ser quantificado e de que os big data garantem conhecimentos objetivos.

Pilar 3: a dataficação como processo global explorado pelo capitalismo, que invade e que coloniza as relações humanas, as emoções e a cultura, como se aponta nesta obra.

Pilar 4: uma perspetiva centrada nas crianças, que as considere como sujeitos que participam em práticas que envolvem dados, e como objetos – sobre quem os dados são produzidos pelos pais, família, instituições ou empresas.

Vejamos sumariamente alguns pontos evidenciados nos vários capítulos deste livro.

Dataficação como prática do eu

A monitorização de indicadores físicos e de bem-estar psicológico é uma prática frequente de adolescentes. Fazem-no em aplicações disponíveis que se apresentam muitas vezes na forma de jogos, que assentam na ideia de que cada um deve levar uma ‘vida saudável’ e ser responsável pela sua saúde, em linha com as normas sociais. Estudos como este mostram que muitos jovens sentem que essas tecnologias lhes roubam a autonomia, enquanto outros, como este, sugerem que a maioria dos jovens não está preocupada com questões de privacidade nem vê o uso dos seus dados por terceiros como problemático. Como se interrogam as autores, se muitos jovens parecem aceitar viver sob uma economia assente na vigilância dos dados, será isso sinal de falta de literacia ou consequência da opacidade com que esses dispositivos operam.

Parentalidade transcendente

Ansiedades e dúvidas parentais levam à aquisição de uma panóplia de dispositivos de captura de dados que vigiem e assegurem à criança todos os cuidados de saúde e bem-estar, desde a gravidez e prolongando-se pela infância e adolescência. Para Mascheroni e Siibak, este nível desmesurado de proteção e de conexão conduz a uma cultura de aversão ao risco, que condiciona as experiências das crianças, trava o desenvolvimento da sua resiliência e coloca-as numa posição vulnerável e dependente. Enquanto isso, contudo, os pais vão criando pegadas digitais dos seus filhos nas suas práticas de sharenting, a circulação digital de conteúdos sobre os filhos que levam a momentos de turbulência sobretudo entre pais e adolescentes sobre as fronteiras da privacidade, como evidencia este artigo.

Amigos e relações em rede

Hoje os meios digitais são a base para crianças e adolescentes construírem a sua identidade através de relacionamentos nas redes de pares. Se a conexão e o fortalecimento de laços entre amigos decorrem das facilidades da conectividade ou da amizade marcada pelos algoritmos, há também consequências negativas dessa bolha de comunicação, desse ‘contacto perpétuo”, como se aponta neste livro.

Este capítulo considera ainda o papel dos pequenos youtubers e outros influenciadores na elaboração do projeto de identidade pessoal. Também os desafios – as oportunidades e os riscos – trazidos por brinquedos digitais merecem atenção. Como escrevem as autoras, a dataficação desafia não só o direito das crianças à privacidade, proteção e provisão de espaços seguros e com design apropriado à sua idade; essa mercantilização do brincar das crianças ameaça também o direito das crianças a participarem, aprenderem e desenvolverem relações sociais.

Lares e brinquedos inteligentes

Múltiplos dispositivos interconectados em casa estimulam relações de comunicação com os seus utilizadores, de que são um exemplo os smart speakers.  Estudos mostram a popularidade destes dispositivos nas crianças mais novas, que os exploram de forma autónoma, ‘conversando’ com eles e integrando-os nas suas brincadeiras. Esta exploração tem gerado estudos sobre consequências cognitivas, emocionais e morais destas interações. Por seu lado, brinquedos inteligentes têm suscitado preocupações sobre a privacidade dos dados e a publicidade altamente personalizada que permitem.

Escola e educação geridas por dados

Acelerada pela pandemia, a educação através de plataformas digitais tem assentado na ideia de que estas favorecem a aprendizagem personalizada e o envolvimento dos alunos, em linha com a ideologia da eficácia assegurada pela recolha, quantificação e gestão da informação dos seus conhecimentos e comportamento.  Como alertam, avanços neste campo – em que as crianças são claramente mais objetos do que sujeitos ativos – podem levar a currículos desenhados à medida do aluno, com base nos perfis de ADN.

Tensões entre direitos de proteção e de participação

Para Giovanna Mascheroni e Andra Siibak, considerar as consequências futuras dos processos de automatização e de automatização implica reconhecer as tensões entre direitos de proteção e de participação.  Esta perspetiva implica ultrapassar o foco das relações entre crianças e tecnologias que se apresenta consolidado sobretudo em direitos de proteção, como aparece em enquadramentos normativos como o europeu Regulamento Geral da Proteção de Dados. 

Por ultrapassar esse foco apenas centrado na proteção, as autoras saúdam a perspetiva do recente Comentário Geral nº 25 à Convenção sobre os direitos da criança no contexto digital: a sua consideração de que todos os direitos consignados naquela Convenção – de proteção, provisão e participação – se aplicam tanto no contexto digital como fora dele.


Sugestão

Pode visionar a apresentação de capítulos deste livro, feita por Andra Siibakem inglês, onde apontou sobretudo contextos da família e da educação. Esta foi a primeira conversa do ciclo Os Dados e Nós, do Instituto de Comunicação da Nova, onde questões da dataficação, apresentadas por especialistas internacionais, estão disponíveis em vídeo e resumidas em português.

Sobre a Autora

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Cristina Ponte

Professora Catedrática - NOVA FCSH. ICNOVA

Tem investigado a relação de crianças e jovens com os media na perspetiva dos seus direitos e contextos familiares em projetos nacionais e europeus.