Cristina Ponte e Estrella Luna
20 de Novembro, 2025
Nem de propósito. Quando se anuncia o objetivo de garantir tutores de IA aos alunos, estamos a ler as respostas de adolescentes ao seguinte cenário: “Imagina que, um dia, o teu professor está doente. Mas podes ir à escola nesse dia porque há um “professor IA” na sala de aula. Tal como o teu professor, senta-se à tua frente, explica a lição e faz perguntas. O que pensas dessa situação? Achas que poderá vir a acontecer?” As respostas não foram unânimes e apontaram questões que vão além da tecnologia.
Não, porque…
A maioria dos quinze entrevistados (entre 13 e 17 anos), todos utilizadores do ChatGPT, manifestou-se contra um professor ‘robótico’.
- Para Luís, os professores-robôs seriam incapazes de interpretar o significado das ações do aluno, quando este “não sabe ou não quer responder”;
- Isabel considera que as ferramentas de IA “até conseguem explicar a matéria”, disso não duvida, mas não deviam substituir os professores “porque são profissões que devem ser feitas por seres humanos”;
- Fernando gostaria de acompanhar a evolução tecnológica, mas preocupa-o o que aconteceu em outras ocasiões em que a tecnologia chegou à escola (avarias, material estragado, confusão): “acho que ia começar a falhar alguma coisa”.
Sim, mas…
Salientando a atual falta de professores, três adolescentes do ensino secundário realçam que esse cenário de substituição poderia ser uma oportunidade para o cumprimento integral dos programas curriculares. Mas encaram-no de perspetivas diferentes:
- Para Diana, teria o mesmo papel, e seria ainda “uma maneira de continuar a fazer esta profissão, que é incrível, que é a base da nossa educação;
- Samuel considera que esses professores robotizados trariam consequências negativas na procura da profissão por parte de futuros professores: “dar aulas com inteligência artificial iria fazer com que cada vez houvesse menos professores”;
- Miguel, o que se mostrou mais focado no seu sucesso escolar, enfatiza a dimensão relacional: “não seria positivo para os alunos, não termos uma figura humana com sentimentos com quem possamos estabelecer uma relação pessoal.”
Como por esse mundo fora, estes adolescentes não esperaram que os seus professores lhes ensinassem a usar o ChatGPT, quando este apareceu em finais de 2022. Começaram a usá-lo para trabalhos de casa, pela sua “rapidez” e “facilidade”. Muitos consideram mesmo que as suas respostas são sempre “objetivas”.
Dois anos mais tarde, todos continuam a usar o ChatGPT, mas não da mesma maneira: uns limitam-se a que o trabalho de casa que entregam não fique “bem igual” ao que saiu como resposta; outros beneficiam de orientação de professores sobre como devem pesquisar ou organizar a apresentação; vários inquietam-se com questões éticas (“será que não estou a deixar de pensar por mim?”).
A literacia digital e, em particular, a Inteligência Artificial passa também por estas questões.
Por isso, vale a pena considerar como está a ser pensada a educação digital no país, em duas Estratégias Nacionais aprovadas em 2025: a Estratégia Digital Nacional e a Estratégia Única dos Direitos das Crianças e Jovens (2025-2035).
Entre “programar” e “responsabilizar”
De acordo com a recente Estratégia Digital Nacional, os alunos devem terminar o ensino obrigatório com as competências digitais, “num processo de aprendizagem personalizado e melhorado”.
Nessa linha, o seu Plano de Ação 2025-2026 aponta para:
- A revisão dos conteúdos curriculares relacionados com o digital na disciplina de Educação Tecnológica;
- Atividades extracurriculares de sensibilização, motivação e promoção de competências em programação, robótica, comunicação digital e Inteligência Artificial;
- Certificação de competências, num modelo que facilite a “adaptação rápida às mudanças do mercado” e “reforce a empregabilidade”.
Por sua vez, a Estratégia Única dos Direitos das Crianças e Jovens (2025-2035) define a segurança digital como uma dimensão transversal de proteção à infância. Aponta o potencial de aprendizagem, de participação e de cidadania deste ambiente, enquanto assinala os seus riscos: exposição da identidade; perigo de violência; acesso a conteúdos desadequados (nomeadamente, conteúdos sexualizados); adição a ecrãs e videojogos. Entre as linhas de ação desta Estratégia, contam-se as que promovam:
- A literacia digital de crianças e jovens, para que a utilização seja feita de forma segura, responsável, protegida e promotora dos seus direitos;
- A segurança e o uso responsável das tecnologias digitais;
- A utilização da inteligência artificial de forma responsável.
Ambas aparentam orientações distintas: uma sustenta-se numa educação tecnológica voltada para o mercado de trabalho futuro; outra alicerça-se na responsabilidade (exclusiva?) das crianças e jovens quanto à sua segurança digital.
Sim, a formação tecnológica e a “consciência do meio digital” (pensar antes de agir, ser responsável…) são necessárias. Mas serão suficientes? Entre aulas de Educação Tecnológica, certificação de competências e aprendizagens de programação e inteligência artificial, por um lado, e campanhas de segurança e responsabilização que aparentam desresponsabilizar todos os outros agentes envolvidos, nomeadamente as próprias plataformas, perguntamos: que espaço sobra para literacias críticas sobre a inteligência artificial, que correspondam aos desafios e às oportunidades com que se deparam os cidadãos adolescentes de hoje, cidadãos adultos de amanhã?
Nota:
Estes depoimentos foram recolhidos no estudo Jovens e Inteligência Artificial Generativa, da rede EU Kids Online, em curso em 13 países, entre os quais Portugal. Em cada país, foram entrevistados 15 adolescentes, entre 13 e 17 anos, que já utilizavam ferramentas de inteligência artificial.
Em Portugal, os adolescentes mais velhos (15-17 anos) que entrevistámos já tinham alguma ideia de como funcionava o sistema. Escasseava, contudo, o conhecimento sobre a natureza da Inteligência Artificial, como reflete escolhas e perspetivas humanas, as capacidades e limitações que apresenta e qual o seu papel na sociedade – traços de literacia para a IA destinados a jovens, realçados neste documento da OCDE (2025).
O relatório dos resultados de Portugal ficará disponível brevemente.
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Sobre as Autoras
Cristina Ponte
Professora Catedrática - NOVA FCSH. ICNOVA
Tem investigado a relação de crianças e jovens com os media na perspetiva dos seus direitos e contextos familiares em projetos nacionais e europeus.
Ver Publicações →Estrella Luna
Doutora em Educação com as TIC pela Universidade de Lisboa
Membro da equipa portuguesa da rede EU Kids Online, é especialista no uso dos media e das TIC para o empoderamento dos jovens na participação cidadã e na integração social. É uma das representantes na Aliança Media and Information Literacy da UNESCO e membro do Capítulo da América do Norte e da Europa.
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