Crianças-repórteres: o que querem saber e porquê

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Ana Cátia Ferreira e Juliana Doretto

O que perguntam as crianças quando podem ser ‘repórteres por um dia’? As entrevistas que conduzem na revista Visão Júnior mostram de que forma compreendem o mundo em que vivem.

Em Portugal, a revista mensal Visão Júnior, voltada para crianças e jovens dos 7 aos 14 anos, tem um site com conteúdos gratuitos e pode também ser lida em versão digital. E esta coexistência entre o formato em papel e o digital agrada às crianças, que aí encontram um espaço para participação e expressão pessoal.

Além de um grupo de consultores juniores, que dá a sua opinião sobre as capas e as temáticas da sua preferência, a revista tem secções em que as crianças podem participar na construção das matérias jornalísticas. Em  Miúdos a Votos podem, por exemplo, eleger o livro que consideram “mais fixe”. 

Na secção “Repórter Júnior”, as crianças podem atuar como repórteres e entrevistar figuras públicas que admiram. Mesmo que não sejam assinantes da revista, podem indicar pessoas com quem desejariam conversar. Se forem escolhidas, recebem ajuda de jornalistas para preparar a entrevista.

Investigar as perguntas que fazem é, também, um modo de conhecer o que pensam sobre o mundo em que vivem, as suas curiosidades, desejos e preocupações. Num estudo sobre essas entrevistas, foram analisadas as publicadas em 2022 e 2023.

Quem querem entrevistar? E para saber o quê?

Querem entrevistar figuras públicas portuguesas, com destaque para músicos, escritores e profissionais dos media, ou seja, pessoas com carreiras mais tradicionais comparadas com os influenciadores digitais, youtubers e outras figuras da internet.

Se o desejo de entrevistar escritores sinaliza a sua ligação aos livros e a coleções, a escolha de figuras ligadas à música e à televisão revela o seu fascínio pelo desempenho público, espetáculo, fama e sucesso.

E as questões que colocam refletem preocupações com o seu próprio futuro sucesso profissional. Cerca de seis em dez incidem sobre rotinas de trabalho, desafios e conselhos de carreira. Por exemplo:

  • Como ganhas dinheiro?
  • Qual o segredo para ter sucesso na sua profissão?
  • Eu também gostava de ser jornalista e de ter um blogue. Que conselhos me dá para ter sucesso?
  • Que idade tinhas quando sentiste que era isto que querias fazer na vida?

Para além da curiosidade com as escolhas profissionais dos seus ídolos, em saber como se preparam para as suas atividades e desejar receber conselhos seus, estes pequenos entrevistadores querem também saber como a vida pessoal das figuras que admiram se relaciona com carreiras bem-sucedidas.

A busca precoce de sucesso e realização

O discurso neoliberal – que defende que cada pessoa deve alcançar sucesso pessoal e profissional (frequentemente associado à fama e ao dinheiro) por meio dos seus próprios “méritos” – também influencia as expetativas e preocupações das crianças.

Essa forma de pensar vai além da economia e afeta todas as áreas das nossas vidas, como as relações pessoais e a educação, desenhadas para a busca do sucesso individual, já apontavam Pierre Dardot e Christian Laval em 2016.

Quando analisamos as perguntas feitas pelas crianças nas suas entrevistas, percebemos que estas compreensões já chegam até elas. Também elas já são constantemente cobradas para alcançar sucesso financeiro e fama.

É por isso que as crianças perguntam a figuras públicas que admiram o que devem fazer ou quais são as escolhas que precisam de tomar, e não as dificuldades ou insucessos que tiveram quando eram crianças. O discurso da fama e do sucesso tornou-se natural, invisível e integrado no nosso (e no seu) dia a dia.

As oportunidades nos espaços de participação

Os espaços de participação das crianças no jornalismo que lhes é dirigido, na forma impressa ou digital, são também caminhos para que possamos entender os assuntos que as motivam e preocupam.

Para professores, estes espaços podem ser um recurso educativo, por exemplo nas bibliotecas escolares, onde há anos a Visão Júnior se encontra acessível. Para pais, pode ser uma oportunidade de conversar com os filhos sobre temas atuais e sobre os valores que permeiam a sociedade.

No caso que tomamos como exemplo, permite refletir sobre o que é ter sucesso, ser bem-sucedido e os diferentes sucessos, enfim, conversar sobre diferentes aspetos do mundo contemporâneo e pensar em como viver melhor em conjunto.

Referências

Ana Cátia Ferreira e Juliana Doreto (2024). “O que perguntam as crianças-repórteres? Visões de mundo e participação no jornalismo infantojuvenil”. Revista Media & Jornalismo, vol. 24, n.º 45. https://impactum-journals.uc.pt/mj/article/view/14190.

Pierre Dardot e Christian Laval (2016). A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Editora Boitempo.

Sobre as Autoras

Ana Cátia Ferreira

Doutoranda bolseira em Ciências da Comunicação - Universidade Fernando Pessoa. ICNOVA

Tem como linhas de investigação o jornalismo para crianças, sua história, produção e participação infantil, além da literacia para notícias e jornalismo especializado.

Juliana Doretto

Professora Permanente em Educação e Jornalismo - Pontifícia Universidade Católica de Campinas

A sua pesquisa tem-se voltado para as relações entre jornalismo, infâncias e adolescências, em vertentes como as representações mediáticas desses grupos, o seu consumo de notícias e a produção do jornalismo infantojuvenil, além da educação mediática.