Proibir ecrãs recreativos?

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Cristina Ponte e Susana Batista

Na casa de Laura (5 anos) e Luísa (3 anos) o tablet que partilham ou o grande ecrã do televisor da sala onde veem desenhos animados convivem com os livros que vão buscar regularmente à biblioteca pública. Há regras e realismo no uso de ecrãs. Mas a responsabilidade pelo crescimento saudável das crianças não cabe apenas às famílias. O bem-estar dos mais novos e a capacitação das suas famílias para lidar com este ambiente digital decorre também de políticas públicas.

Na família de Laura e Luísa, livros e ecrãs uns fazem parte dos recursos que as duas crianças de poucos anos usam para o seu lazer, em casa. Não é esse o argumento do livro de Michel Desmurget, A Fábrica dos Cretinos Digitais. Nele, o neurocientista francês aponta a “interdição de ecrãs recreativos (pelo menos) antes dos seis anos”, e a sua substituição por livros adequados à sua idade. Na família de Laura e Luísa, contudo, uns e outros fazem parte dos recursos que as duas crianças usam para o seu lazer, em casa.

O subtítulo deste livro que suscitou grande atenção nos meios de comunicação (Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos) coloca a tónica nos danos e enfatiza a responsabilidade das famílias. O argumento é a regressão do ser humano em termos cognitivos e de capacidades intelectuais pela sua “exposição excessiva aos ecrãs”. Os estudos que refere têm origem sobretudo na área da saúde e identificam relações de causalidade direta

Por isso, o neurocientista opõe ao “consumo frenético de ecrãs recreativos”, os benefícios dos livros para crianças, considerando que seriam mais propícios a uma intervenção familiar de qualidade. Faz notar que é rara a presença dos pais durante o visionamento de ecrãs e que, durante um desenho animado, a prática de conversar com a criança sobre o que está a decorrer no ecrã é bem mais difícil do que conversar sobre a história quando se folheia num livro.

Sem dúvida que há muito de pertinente no tom provocador que Michel Desmurget usa neste livro. Mas o modo como generaliza os malefícios dos ecrãs que não sejam “educativos”, que não “ensinem” conhecimentos úteis, está também em linha com uma cultura intelectual francesa para a infância que valoriza sobremaneira a “boa literatura”. Por exemplo, as “pequenas enciclopédias” para crianças, encarando-as como “adultos em ponto pequeno” surgiram em França há mais de duzentos anos, enquanto do outro lado do canal da Mancha, as rimas para embalar (nursery rhymes) predominavam nos conteúdos infantis em língua inglesa, com a sua musicalidade e humor disparatado.

Dentro desta cultura intelectual, não admira que no livro de Desmurget as famílias sejam responsabilizadas por deixarem as crianças verem desenhos animados em vez de colocarem à sua disposição livros instrutivos e pedagógicos. Mas essa generalização esconde desigualdades. É como se todas as famílias vivessem em lares “de classe média”, onde as crianças têm acesso fácil a livros e retaguarda familiar sempre disponível. Do lado de fora, ficam muitos lares marcados por escassez de recursos – financeiros, de tempo, de apoio.

A tecnologia e a diversidade das famílias

Hoje os lares estão povoados de ecrãs tácteis, interativos e de manejo fácil. Imagens em movimento, cor, musicalidade e outros efeitos sonoros captam a atenção das crianças pequenas mesmo antes de entenderem do que falam as personagens. Tudo isso leva a que façam usos dos ecrãs tácteis em condições de autonomia relativa, que deixam familiares admirados com a facilidade com que os manuseiam e como vão parar ao que desejam ver – e ver de modo repetido.

Mas os ecrãs não têm de ser os controladores dos tempos de lazer das crianças pequenas. Podem conviver com livros que as crianças folheiam para explorar e para rever, como na casa de Laura e Luísa. Cada uma pode levar para casa cinco livros, que renovam uma vez por mês. Também existem regras para o uso do Netflix na televisão da sala, ou para alguns jogos já instalados no tablet. E os programas preferidos passam também por explorar a mata perto de casa, em família, ou andar de bicicleta na praceta.

Entre as rotinas diárias – regresso a casa, hora do banho, preparação das refeições – e as pressões sociais para gestão dos ecrãs, as famílias vão reequilibrando de formas complexas e distintas o lugar que os dispositivos assumem na vida dos seus filhos pequenos. E tal como outras interações, ferramentas e atividades, o uso que as crianças fazem dos ecrãs não tem de ser exclusivamente educativo – serve também propósitos de lazer.

Além disso, torna-se difícil ou mesmo impossível considerar a interdição ao acesso a ecrãs na primeira infância, quando:

  • existem diversos dispositivos de pequena dimensão em casa e já não apenas um televisor comum na sala.
  • há pais com filhos em casa e que estão em teletrabalho.
  • um irmão mais velho já mexe com autonomia em meios digitais.

Por isso, o acesso aos ecrãs é indissociável de mudanças nos contextos sociais, familiares, e dos próprios dispositivos tecnológicos.

Direito a usufruir do digital salientado no Comentário Geral nº25 à Convenção sobre os Direitos da Criança

Tendo em atenção o ambiente digital em que vivemos e o direito ao desenvolvimento na primeira infância, o recente  Comentário Geral nº 25 à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 2021, aponta aos Estados membros uma intervenção e cuidados que complementam a responsabilidade das famílias.

Em particular no que se refere às crianças mais novas, o Art. 15 do Comentário Geral aponta as seguintes recomendações e orientações:

  • Os Estados Partes devem prestar atenção específica aos efeitos da tecnologia nos primeiros anos de vida, quando a plasticidade cerebral é máxima e o ambiente social, em particular relações com pais e cuidadores, é crucial para configurar o desenvolvimento cognitivo, emocional e social das crianças. Nos primeiros anos de vida, pode ser necessário tomar precauções, consoante o desenho, objetivo e utilização das tecnologias.
  • Os Estados Partes devem proporcionar aos pais, educadores, cuidadores e outros atores relevantes formação e aconselhamento sobre a utilização adequada dos dispositivos digitais, tendo em conta os estudos sobre os efeitos das tecnologias digitais no desenvolvimento das crianças, especialmente durante as fases críticas de desenvolvimento neurológico da primeira infância e da adolescência.

Sublinhando os efeitos das tecnologias no desenvolvimento cognitivo, emocional e social nos primeiros anos de vida, recomendam-se assim:

  • Medidas de precaução sobre as tecnologias disponíveis, que envolvem também outros agentes, como as próprias indústrias digitais;
  • Formação e aconselhamento das famílias e outros intervenientes adultos.

Estas orientações podem ajudar a um conhecimento mais exigente que não se baseie numa proibição de ecrãs que, em alguns contextos familiares, não é nem real nem facilmente aplicada.  Tendo em conta o nível de desenvolvimento das crianças, nomeadamente das mais pequenas, o conhecimento por parte das famílias sobre as suas responsabilidades e sobre as responsabilidades públicas é essencial para promover ambientes estimulantes, seguros e equilibrados.

Referências

Desmurget, M. (2021). A Fábrica dos cretinos digitais. Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos. Lisboa: Contraponto

Ministério Público de Portugal (2021). Comentário Geral Nº 25, sobre os Direitos da Criança em ambiente digital. Versão em português.

Ponte, C. (2012). Crianças & Media. Pesquisa internacional e contexto português do século XIX à atualidade. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

Sobre as Autoras

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Cristina Ponte

Professora Catedrática - NOVA FCSH. ICNOVA

Tem investigado a relação de crianças e jovens com os media na perspetiva dos seus direitos e contextos familiares em projetos nacionais e europeus.

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Susana Batista

Professora Auxiliar - NOVA FCSH. CICS.NOVA

Além de investigar e intervir na educação e formação de professores, tem explorado as competências digitais de jovens, a mediação parental e a cidadania digital.