Dados e infância: uma perspetiva de sharenting

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Francisca Porfírio e Ana Jorge

Quer seja a dançar, a comer, a aprender ou a fazer um disparate típico da idade, atualmente as crianças estão no “palco” das redes sociais através de fotografias, vídeos, memes e outras formas de conteúdo. A internet veio alterar o modo como os pais contam histórias sobre as crianças: os anúncios de gravidez, as ecografias ou os chás de bebé são práticas recorrentes de sharenting, muitas vezes visíveis para um público alargado.

O que é o sharenting?

O fenómeno de partilha de informações online, por parte dos pais sobre os seus filhos, foi apelidado de sharenting, uma fusão dos termos ingleses sharing (compartilhar) e parenting (parentalidade). Esta noção relaciona-se ainda com a crescente centralidade da internet e das aplicações online para que adultos obtenham conselhos, calculem dados e padrões de saúde ou até mesmo monitorizem o paradeiro do seu bebé.

Estudos como este, sobre as motivações que conduzem os pais a partilhar as suas experiências de parentalidade, revelam que os adultos o fazem, muitas vezes, para receber apoio social. A partilha pode também contribuir para que os pais sintam que estão a desempenhar um bom papel, ajudando outros adultos na mesma situação. A criação de um “álbum digital” das crianças permite também a perpetuação de momentos da vida íntima dos mais novos.

Mas se um grande número de pais vê a partilha como algo positivo, outros evitam colocar conteúdos sobre os seus filhos online, pois entendem essa ausência digital da criança como uma forma de proteção. Adoptam assim uma posição de anti-sharenting.

Os media populares têm retratado os pais como “negligentes” por colocarem em risco a privacidade dos dados dos seus filhos. Contudo, académicos como Davide Cino referem que esta perspetiva é, no mínimo, simplista. Os pais encontram-se, assim, perante um paradoxo: por um lado, identificam benefícios em utilizar aplicações digitais ou em partilhar momentos íntimos das suas crianças; por outro, deparam-se com complexas questões de privacidade.

Os dados das crianças

De uma perspetiva mais materialista, o sharenting relaciona-se ainda com a multiplicidade de produtos IoT (Internet-of-Things) desenhados para crianças e adultos. Estes abarcam instrumentos de monitorização de dados biométricos, de saúde e padrões comportamentais (sono, alimentação, entre outros), objetos com reconhecimento de voz, brinquedos mecânicos controlados digitalmente e até aplicações que prometem ajudar os pais no exercício das suas tarefas, de uma maneira mais tranquila. 

Assim, seja através da publicação de um vídeo cómico sobre a criança ou da utilização de uma app ligada à câmara de vigilância que monitoriza o seu sono, os pais estão a contribuir para a dataficação da identidade dos seus filhos, “fornecendo” dados de natureza diversa.

Giovanna Mascheroni, especialista em sociologia dos media,  descreveu a dataficação como sendo o processo que transforma quase todos os aspetos da vida social em dados online, pela ação de tecnologias que permitem aos utilizadores produzirem dados sobre si e sobre os outros.

Quando os pais registam os hábitos de saúde das crianças, por exemplo, estão, na maior parte dos casos, sustenta Tama Leaver, a praticar um tipo de ‘vigilância íntima’, ou seja, um tipo de vigilância das crianças que é “bem-intencionado” e até percecionado como uma boa prática de cuidado.

Contudo, o processo de dataficação fez emergir o que a psicóloga Shoshana Zuboff  apelidou de “capitalismo de vigilância” – uma nova forma de capitalismo de informação que tem como finalidade prever e modificar o comportamento humano, como forma de produzir receitas e controlar o mercado.

Assim, devido ao facto de os registos nas aplicações, por exemplo, envolverem dados pessoais e comportamentais das crianças, estes são colhidos e armazenados em plataformas corporativas online, partilhados com terceiros e com valor de mercado. Em troca, os pais usufruem de serviços gratuitos e personalizados sobre a sua criança.

Na maioria dos casos, quer as ferramentas digitais para os pais quer plataformas educativas tendem a ignorar questões relacionadas com a privacidade e os direitos digitais da criança.

Como proteger os dados dos seus filhos?

A necessidade de proteger as crianças contra a publicação dos seus dados na internet é uma preocupação de pais, especialistas e académicos. Stacey Steinberg, professora de Direito da Universidade da Flórida, aponta sete recomendações que podem ajudar os pais a proteger os dados das suas crianças em matéria de sharenting. Com base nas mesmas, formulamos as seguintes recomendações:

  1. Os pais devem conhecer as políticas de uso e privacidade dos sites, redes e aplicações que utilizam;
  2. Os adultos devem configurar alertas que permitam rastrear em que lugares as informações sobre os seus filhos se encontram e monitorizar as respostas e as alterações de terceiros em relação aos conteúdos;
  3. Quando quiserem obter informações mais específicas ou esclarecer dúvidas em relação à criança devem apoiar-se em fóruns de ajuda;
  4. Os responsáveis pela criança devem evitar publicar fotografias de crianças nuas ou seminuas;
  5. Os pais devem evitar partilhar a localização da criança, não só nos conteúdos que publicam mas também em aplicações que utilizam para monitorizar o paradeiro da criança.
  6. Sempre que possível, os pais devem falar abertamente com a criança sobre aquilo que gostaria que fosse publicado sobre si, demonstrando respeito e ensinando-lhe a importância do consentimento e das boas práticas nas redes sociais.
  7. Os adultos devem sempre ter em consideração a salvaguarda do bem-estar imediato e futuro das crianças.

Por fim, também aqueles que “governam” as plataformas digitais têm responsabilidades. Desde logo, em tornar as suas políticas de uso e privacidade mais claras e legíveis, ao invés de extensas e pouco objetivas. Há ainda necessidade imediata de tornar mais clara qual a real utilização que as plataformas fazem dos dados das crianças.

Sobre as Autoras

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Francisca Porfírio

Doutoranda em Ciências da Comunicação - Universidade Lusófona

Licenciada em Sociologia pelo ISCTE-IUL, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, e bolseira de doutoramento pela FCT.

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Ana Jorge

Investigadora Coordenadora - Universidade Lusófona. CICANT

Tem investigado a relação de crianças e jovens com a cultura mediática popular.